segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Diário de uma Paixão - NICHOLAS SPARKS

Romance Contemporâneo


“Não sou nada especial; disso estou certo. Sou um homem comum, com pensamentos comuns e vivi uma vida comum. Não há monumentos dedicados a mim, e o meu nome em breve será esquecido, mas amei outra pessoa com toda a minha alma e coração e, para mim, isso sempre bastou.” 
Noah Calhoun. 


     Assim tem início uma das mais emocionantes e intensas histórias de amor que você lerá na vida. 
     O livro é o retrato de uma relação rara e bela, que resistiu ao teste do tempo e das circunstâncias. Com um encanto raramente encontrado na literatura atual, o Diário de uma Paixão, de Nicholas Sparks, o consagra como um contador de histórias clássicas, com uma perspectiva excepcional sobre a mais importante e única emoção que nos mantém. 
     Com mais de 12 milhões de cópias vendidas, o livro que emocionou as pessoas ao redor do mundo foi traduzido para mais de 20 línguas.



"Os românticos chamariam into de uma história de amor, os cínicos diriam que é uma tragédia. Na minha cabeça é um pouquinho de ambas, e no fim das contas qualquer que seja a maneira como você escolha encarar este relato, nada altera o fato de que ele abrange uma grande parte da minha vida e do caminho que eu escolhi trilhar. Não tenho nenhuma queixa a fazer quanto ao meu percurso e aos lugares aonde ele me levou; talvez sobre outras coisas eu tenha reclamações, suficientes para encher uma tenda de circo, mas o caminho que escolhi tem sido sempre o certo, e eu também pouco gostaria que tivesse sido de outro jeito." Noah Calhoun

A história começa no inicio de outubro de 1946 quando dois jovens, Noah Calhoun e Allison Nelson, se conhecem e se apaixonam perdidamente. Tudo parece perfeito, quando a família de Allie a impede de continuar a vê-lo devido a enorme diferença de classe social entre os jovens.

Primeiro Capítulo

Fantasmas

Estava-se no princípio de Outubro de 1946, e Noah Calhoun observava o Sol desvanecente a mergulhar mais a partir do pórtico que circundava a sua casa ao estilo de plantação sulista. Gostava de se sentar ali nos fins de tarde, especialmente depois de trabalhar duramente o dia todo, e deixar os pensamentos deambular sem um propósito consciente. Era assim que se descontraía, um truque que aprendera com o pai.
Gostava especialmente de olhar as árvores e os reflexos delas no rio. As árvores da Carolina do Norte são muito belas em pleno Outono: verdes, amarelos, vermelhos, laranjas e todas as tonalidades intermédias. As cores assombrosas brilham com o sol e, pela centésima vez, Noah Calhoun imaginou se os primeiros proprietários da casa teriam passado assim as tardes a pensar nas mesmas coisas.
Fora construída em 1772, o que a tornava numa das mais antigas e maiores habitações de Nova Berna. Originalmente tinha sido a casa principal da plantação. Comprara-a logo a seguir à Guerra ter terminado, e nos últimos onze meses havia gasto uma pequena fortuna a consertá-la. O repórter do jornal de Raleigh tinha feito um artigo sobre ela algumas semanas atrás onde dissera que era um dos melhores restauros que alguma vez vira. Pelo menos a casa era. O resto da propriedade seria outra história, e fora nela que passara a maior parte do dia.
A casa assentava sobre uns doze acres adjacentes ao ribeiro de Brices, e estivera a trabalhar na vedação de madeira que cercava os outros três lados da propriedade, procurando caruncho ou térmitas, substituindo os postes quando era preciso. Ainda tinha muito trabalho para fazer ali, em particular no lado oeste, e enquanto arrumava as ferramentas um pouco antes, tomara nota mentalmente para telefonar a pedir que lhe enviassem mais madeira. Entrou em casa, bebeu um copo de chá doce, e foi para o duche. Tomava sempre duche ao fim do dia, com a água a lavar a sujidade e o cansaço.
Depois penteara o cabelo para trás, vestiu umas calças de ganga coçadas e uma camisa azul de mangas compridas, encheu outro copo com chá adoçado, e foi para o alpendre, onde se sentava agora, onde se sentava todos os dias por esta hora.
Esticou os braços acima da cabeça e depois para os lados, fazendo rolar os ombros enquanto acabava o exercício. Sentia-se bem e limpo, fresco. Tinha os músculos cansados e sabia que no dia seguinte lhe iriam ficar um pouco doridos, mas sentia-se feliz por ter conseguido acabar quase tudo o que se propusera fazer.
Noah esticou-se para apanhar a viola, lembrando-se do pai ao fazê-lo, pensando como sentia tanto a falta dele. Experimentou um acorde, ajustou a tensão em duas das cordas, depois dedilhou de novo. Desta vez até lhe soava afinado e principiou a tocar. Música doce, música calma. Trauteou primeiro durante algum tempo, depois começou a cantar enquanto a noite caía em torno de si. Tocou e cantou até o sol desaparecer e o céu se tornar escuro.

Passava pouco das sete quando desistiu, se instalou melhor na cadeira e começou a balançar-se. Por hábito, olhou para cima e viu Oríon e a Ursa Maior, Gémeos e a Estrela Polar a tremeluzirem no céu outonal.
Começou a fazer contas de cabeça e depois parou. Sabia que tinha gasto as suas poupanças quase todas com a casa, e que muito em breve teria que arranjar de novo um emprego, mas afastou o pensamento e decidiu gozar os meses de restauro que ainda lhe faltavam sem se preocupar com o assunto. Seria melhor para si, e ele sabia-o; funcionava assim. Além disso, pensar em dinheiro aborrecia-o sempre. No princípio, habituara-se a gozar as coisas simples, coisas que não podiam ser compradas, e era-lhe muito difícil perceber as pessoas que pensavam de outra maneira. Era um outro traço que tinha herdado do pai.
Clem, a sua cadela de caça, chegou-se até ele e encostou-lhe o focinho à mão antes de se lhe deitar aos pés. "Olá rapariga, como estás?" perguntou-lhe, dando-lhe palmadinhas na cabeça, e ela rosnou docemente, lançando-lhe os olhos redondos e inquisidores. Um acidente de automóvel fizera-a perder uma perna, mas ainda conseguia mexer-se bastante bem e fazia-lhe companhia nas noites calmas como esta.
Já tinha feito os trinta e um anos, não era muito velho, mas o suficiente para se sentir só. Não saíra com ninguém desde que regressara ali, nem tinha encontrado ninguém que lhe interessasse mesmo remotamente. A culpa era sua, sabia bem. Havia algo que mantinha uma distância entre ele e qualquer mulher que começasse a aproximar-se, algo que ele não tinha a certeza de conseguir mudar ainda que tentasse. E às vezes, nos momentos imediatamente anteriores à chegada do sono, perguntava-se se estaria destinado a ficar só para sempre.
O crepúsculo passou, continuando quente, agradável. Noah ficou-se a ouvir os grilos e o roçagar das folhas, pensando que os sons da natureza eram mais reais e suscitavam-lhe mais emoção do que objectos como carros e aviões. As coisas naturais davam mais do que tiravam, e os seus sons levavam-no sempre de volta para aquilo que era suposto ser real. Havia alturas, durante a Guerra, especialmente depois de uma missão mais importante, em que pensava muitas vezes nestes sons simples. "Vão impedir-te de ficares louco", dissera-lhe o pai no dia em que embarcara. "É a música de Deus, e vai trazer-te de volta a casa."
Acabou o chá e foi para dentro. Pegou num livro e, ao sair de novo, acendeu a luz do alpendre. Depois de se sentar outra vez, olhou para o livro. Estava velho, tinha a capa rasgada e as páginas sujas de lama e água. Era As Folhas de Erva de Walt Whitman, que trouxera sempre consigo durante toda a Guerra. Uma vez até recebera uma bala por ele.
Esfregou a capa, limpando-a só um pouco. Depois deixou que o livro se abrisse ao acaso, e leu as palavras diante de si:

Esta é a tua hora, ó alma, o teu voo livre adentro do indizível, longe dos livros, da arte, o dia apagado, as lições feitas,
Emerges e avanças totalmente, silenciosa, observando, ponderando nos temas de que mais gostas,
A noite, o sono, a morte e as estrelas


Sorriu para si. Por um motivo qualquer, Whitman recordava-lhe sempre Nova Berna, e sentia-se contente por ter regressado. Embora tivesse estado longe por catorze anos, aqui era o seu lar, aqui conhecia uma série de gente, a maioria dela do tempo da sua juventude. Não era de admirar. Como tantas outras pequenas cidades sulistas, as pessoas que nela viviam nunca mudavam, apenas ficavam um pouco mais velhas.
O seu melhor amigo nestes tempos era Gus, um negro de setenta anos de idade que vivia ao fim da estrada. Tinham-se conhecido umas duas semanas depois de Noah comprar a casa, quando Gus lhe aparecera com um pouco de licor caseiro e um guisado. Haviam passado os dois a primeira noite juntos a embebedar-se e contar histórias.
Agora Gus visitava-o umas duas noites por semana, normalmente por volta das oito. Com quatro filhos e onze netos em casa, sentia necessidade de sair de vez em quando, e Noah não o podia criticar. Normalmente Gus trazia a harmónica, e depois de conversarem durante um bocado, tocavam algumas canções juntos. às vezes ficavam a tocar horas sem fim.
Acabara por considerar Gus como uma pessoa de família. De facto, não tinha mais ninguém, pelo menos, desde que o pai lhe falecera no ano anterior. Era filho único. A mãe morrera de gripe quando ele tinha dois anos e, embora a dada altura o tivesse querido, o pai nunca voltara a casar.
Que ele soubesse, tinha estado apaixonado uma vez. Uma e única vez, e há imenso tempo. E mudara-o para sempre. O perfeito amor fazia isso a uma pessoa, e aquele fora perfeito.
Nuvens vindas da costa começaram a rolar lentamente através do céu nocturno, mudando-se em prateadas com o reflexo da lua. A vê-las engrossar, inclinou a cabeça para trás e descansou-a de encontro à cadeira de balanço. As pernas moviam-se-lhe automaticamente, mantendo um ritmo constante e, como acontecia todos os dias, sentiu o pensamento recuar-lhe até uma noite quente como esta, catorze anos atrás.
Foi logo a seguir a acabar o liceu em 1932, na abertura do Festival do Rio Neuse. A cidade saíra toda para a rua, a gozar um churrasco e jogos de azar. Estava húmido nessa noite - por um motivo qualquer, recordava-se claramente disso. Chegou sozinho e passeou-se por entre a multidão, procurando os amigos. Viu Fin e Sarah, duas pessoas com quem tinha crescido, a falarem com uma rapariga que nunca tinha visto antes. Era bonita, lembrou-se de ter pensado, e quando finalmente se juntou a eles, ela olhou na sua direcção com um par de olhos desfocados que continuavam a aproximar-se. "Olá", disse simplesmente enquanto estendia a mão, "Finley já me falou imenso sobre ti."
Um começo vulgar, algo que seria esquecido se tivesse vindo de outra pessoa qualquer que não ela. Mas quando lhe apertou a mão, e cruzou aqueles espantosos olhos esmeralda, soube antes de respirar de novo que ela era aquela por quem poderia passar o resto da vida à procura e nunca mais voltar a encontrar. Assim lhe parecera, tão boa, tão perfeita, enquanto uma brisa de Verão soprava entre as árvores.

A partir dali foi como um vento tornado. Fin disse-lhe que ela estava a passar o Verão em Nova Berna com a família porque o pai trabalhava para R. J. Reynolds, e embora apenas tivesse acenado, a maneira como ela o olhava fazia com que o silêncio parecesse correcto. Fin então riu-se, porque percebeu o que estava a acontecer, e Sarah sugeriu que fossem tomar uns refrigerantes de cereja, e os quatro ficaram pela Festa até a multidão se desvanecer e tudo fechar para a noite.
Encontraram-se no dia seguinte, e no dia depois desse, e em breve se tornaram inseparáveis. Todas as manhãs, com a excepção do domingo, em que tinha que ir à igreja, ele acabava as suas tarefas o mais depressa possível, depois ia directo para o parque do Forte Totten, onde ela o esperava. Porque era recém-chegada e nunca estivera antes numa cidade pequena, passavam o dia a fazer coisas que lhe eram completamente novas. Ele ensinou-a a iscar a linha e pescar nos baixios a perca de boca larga, e levou-a a explorar os bosques interiores da floresta de Croatan. Navegaram em canoas e observaram as tempestades de Verão, e a ele parecia-lhe que sempre se haviam conhecido.
Mas também ele aprendeu coisas. No baile da cidade, no celeiro de tabaco, foi ela quem o ensinou a dançar a valsa e o charleston, e embora tropeçassem durante as primeiras canções, a paciência dela para com ele acabou recompensada, e dançaram juntos até a música acabar. Depois levou-a a casa, e quando pararam no alpendre após se despedirem, beijou-a pela primeira vez e ficou a pensar porque é que havia esperado tanto tempo como esperara para o fazer. Mais para o fim do Verão, levou-a a sua casa, olhou para além da degradação. Disse-lhe que um dia lhe iria pertencer e então lhe faria obras. Passaram horas juntos a falar sobre os seus sonhos - o dele de ver o mundo, o dela de ser uma artista - e numa húmida noite de Agosto perderam ambos a virgindade. Quando ela partiu três semanas mais tarde, levou consigo uma parte dele e o resto do Verão. Ficou a vê-la a abandonar a cidade, cedo numa manhã chuvosa, observando-a através de olhos que não haviam dormido na noite anterior, depois foi para casa e fez a mala. Passou a semana seguinte sozinho na ilha de Harkers.
Noah passou as mãos pelo cabelo e olhou o relógio. Oito e doze. Levantou-se e foi até à entrada da casa e lançou os olhos estrada acima. Não se avistava Gus, e Noah calculou que não viria. Regressou à cadeira de balanço e voltou a sentar-se.
Lembrava-se de ter falado dela a Gus. A primeira vez que a mencionou Gus começou a abanar a cabeça e rir. "Então é esse o fantasma de que tens andado a fugir?" Quando lhe perguntou o que é que ele queria dizer com aquilo, Gus respondeu: "Tu sabes, o fantasma, a memória. Tenho estado a observar-te, trabalhas que nem um escravo noite e dia, esforças-te tanto que nem tens tempo para parar e respirar. As pessoas fazem isso por três motivos. Por serem loucos, ou estúpidos, ou para tentarem esquecer. E contigo eu sabia que era para tentar esquecer. Só não sabia o quê."
Pensou no que Gus tinha dito. Gus tinha razão, é claro. Nova Berna agora estava assombrada. Assombrada pelo fantasma da memória dela. Via-a diante do parque do Forte Totten, o sítio deles, de cada vez que por lá passava. Fosse sentada no banco ou de pé junto ao portão, sempre a sorrir, o cabelo loiro a rasar-lhe suavemente os ombros, os olhos da cor das esmeraldas. Quando se sentava no alpendre à noite com a sua viola, via-a a seu lado, ouvindo silenciosamente enquanto ele ia tocando a música da sua infância.

Sentia o mesmo quando ia ao supermercado de Gaston, ou ao teatro Masonic, ou até quando passeava na baixa da cidade. Para qualquer lado que olhasse via a imagem dela, via coisas que a traziam de volta à vida.
Era estranho e sabia-o. Tinha crescido em Nova Berna, e parecia lembrar-se apenas do último Verão, o Verão que tinham passado juntos. Outras memórias eram apenas fragmentos, peças aqui e ali, do crescer, e poucas, se algumas, evocavam qualquer emoção.
Tinha contado isto a Gus uma noite, e Gus não apenas percebera tudo, como fora o primeiro a explicar-lhe porquê. Disse simplesmente: "O meu pai costumava contar-me que a primeira vez que nos apaixonamos muda a nossa vida para sempre, e por mais que se tente, a emoção nunca desaparece. Essa rapariga de quem me tens falado foi o teu primeiro amor. E o que quer que faças, ela ficará contigo para sempre."
Noah abanou a cabeça, e quando a imagem dela começou a desaparecer, regressou a Whitman. Leu durante uma hora, olhando para cima de vez em quando para ver os guaxinins e as sarigueias em correria junto ao regato. às nove e meia fechou o livro, subiu para o quarto, e ficou a escrever no seu diário tanto as observações pessoais quanto o trabalho que tinha feito na casa. Quarenta minutos mais tarde estava a dormir. Clem vagabundeou escadas acima, farejou-o, depois deu umas voltas sobre si própria até por fim se lhe enrolar aos pés da cama.

No princípio da noite e a cem milhas de distância, sentava-se ela sozinha na cadeira de balanço do alpendre da casa dos seus pais, com uma perna cruzada debaixo de si. O assento estava ligeiramente húmido quando se sentara. Havia chovido antes, gotas fortes e afiadas, mas agora as nuvens estavam a desaparecer e ela olhou para lá delas, em direcção às estrelas, perguntando-se se tomara a decisão certa. Andava em conflito consigo própria há dias - e lutara um pouco mais esta noite - e no fim, sabia que nunca mais se perdoaria a si própria se deixasse passar aquela oportunidade.
Lon não soubera a verdadeira razão pela qual ela resolvera partir naquela manhã. Na semana anterior insinuara que quereria visitar alguns antiquários junto à costa. "É só um par de dias", disse, "e além disso, preciso de umas férias dos preparativos do casamento." Sentiu-se mal com a mentira, mas sabia que não haveria maneira de lhe contar a verdade. A partida dela não tinha nada a ver com ele, e não seria correcto da sua parte pedir-lhe que compreendesse.
Foi uma condução fácil a partir de Raleigh, pouco mais de duas horas, e chegou um pouco antes das onze. Registou-se numa pequena estalagem na parte baixa da cidade, foi para o quarto, desfez a mala, pendurou os vestidos no roupeiro e pôs o resto das coisas nas gavetas. Almoçou depressa, pediu à criada os endereços dos antiquários mais próximos, e passou as poucas horas seguintes a fazer compras. Pelas quatro e meia estava de volta ao quarto.
Sentou-se à beira da cama, pegou no telefone e ligou para Lon. Ele não podia falar durante muito tempo, esperavam-no no tribunal, mas antes que desligasse ela deu-lhe o número de telefone do local onde estava e prometeu ligar no dia seguinte. Óptimo, pensou ela enquanto pousava o auscultador. A conversa do costume, nada fora do normal. Nada que o deixasse desconfiado.

Já o conhecia fazia agora quase quatro anos. Haviam-se encontrado em 1942, quando o mundo ainda estava em Guerra e a América há um ano metida nela. Todos participavam de alguma maneira, e ela trabalhava como voluntária no hospital da cidade. Ali era necessária e apreciada, mas fora mais difícil do que esperara. Chegavam as primeiras vagas de jovens soldados feridos de regresso a casa, e passava os dias com homens deprimidos e corpos esfrangalhados. Quando Lon, com todo o seu encanto fácil, se apresentou numa festa de Natal, viu nele exactamente aquilo que lhe fazia falta: alguém com confiança no futuro e um sentido de humor que afastava todos os seus receios.
Era belo, inteligente e ambicioso. Um advogado de sucesso oito anos mais velho do que ela. Levava a cabo o seu trabalho com paixão, não apenas para ganhar causas, mas também para fazer um nome para si. Ela compreendia aquela vigorosa perseguição do êxito, pois o pai e a maioria dos homens que encontrara no seu círculo social eram assim. Como eles, ele fora educado daquela maneira. Depois, no sistema de castas do Sul, o nome da família e as realizações pessoais eram quase sempre as coisas mais importantes a ter em consideração num casamento. Nalguns casos, as únicas.
Embora desde a infância se tivesse revoltado silenciosamente contra esta ideia, e tivesse saído com alguns homens melhor descritos como estouvados, sentiu-se facilmente atraída pelo à-vontade de Lon e, a pouco e pouco, tinha dado por si a amá-lo. Apesar das longas horas que dedicava ao trabalho, era bom para ela. Era um cavalheiro, igualmente amadurecido como responsável, e durante aqueles períodos terríveis da Guerra quando precisava de alguém para a abraçar, estava sempre disponível quando era necessário. Sentia-se segura com ele, sabia que ele também a amava, e foi Por isso que aceitou o pedido de casamento.
Pensar nestas coisas fazia-a sentir-se culpada por estar ali. Sabia que devia era fazer as malas e partir antes que mudasse de ideias. Já lhe acontecera uma vez antes, há muito tempo. Se partisse agora, tinha a certeza de que nunca mais teria forças para regressar aqui de novo. Pegou no livro de apontamentos, hesitou, e quase foi até à porta. Mas a coincidência tinha-a empurrado até aqui. Pousou o livro de apontamentos, de novo tomando consciência de que, se desistisse agora, ficaria para sempre a pensar no que poderia ter acontecido. E achava que não podia viver com isso.
Foi até à casa de banho e pôs a água a correr. Depois de verificar a temperatura, virou-se a caminho da cómoda, a tirar os brincos de ouro enquanto atravessava o quarto. Procurou a bolsa da maquilhagem, abriu-a, e tirou uma gilete e um sabonete, depois despiu-se diante da escrivaninha.
Desde que era menina que todos a achavam muito bela, e assim que ficou nua, olhou-se no espelho. Tinha o corpo firme e bem proporcionado, os seios docemente arredondados, o estômago musculado, as pernas elegantes. Herdara os malares altos da mãe, como a pele macia, e o cabelo loiro, mas a melhor característica era mesmo sua. Os "olhos como as ondas do mar", como Lon gostava de dizer.

Pegando na gilete e no sabonete, foi de novo para a casa de banho. Fechou a torneira, pôs uma toalha ao alcance da mão, e entrou cautelosamente. Gostava do modo como o banho a descontraía, e deixou-se escorregar mais adentro da água. O dia fora longo e as costas estavam tensas, mas sentia-se satisfeita por ter acabado as compras tão depressa. Era preciso regressar a Raleigh com algo de tangível, e as coisas que escolhera serviriam na perfeição. Mentalmente, tomara nota para não se esquecer de procurar os nomes de mais algumas lojas na área de Beaufort, e depois, subitamente, calculou que não seria preciso. Lon não era do tipo de ir verificar o que ela dissesse.
Pegou no sabonete, ensaboou-se e começou a rapar as pernas. Enquanto o fazia, pensou nos pais e no que poderiam pensar do seu comportamento. Não havia dúvidas de que a iriam reprovar, em particular a mãe. A mãe nunca tinha conseguido realmente aceitar o que acontecera no Verão que aqui haviam passado, e não o iria aceitar agora, qualquer que fosse a razão que lhe apresentasse.
Deixou-se ficar um pouco mais de molho na banheira antes de se levantar e enxugar com a toalha. Foi até ao roupeiro e procurou um vestido, por fim escolhendo um amarelo longo, com um ligeiro decote à frente, o tipo de vestido vulgar no Sul. Enfiou-o e olhou-se no espelho, virando-se de um lado e outro. Caía-lhe bem e dava-lhe um ar muito feminino, mas acabou por se decidir tirá-lo e pô-lo de novo no roupeiro.
Em vez daquele escolheu outro mais prático, menos revelador, e enfiou-o. Azul-claro com um toque de renda, abotoava na frente até acima, e embora não lhe ficasse tão bem como o outro, dava uma imagem que ela achou ser mais apropriada.
Pintou-se muito pouco, só um toque de sombra nas pálpebras e rimmel para acentuar os olhos. Depois perfume, não muito. Encontrou um par de brincos pequenos, umas argolas, e pô-los. Depois enfiou as sandálias acastanhadas que usara antes. Escovou o cabelo louro, amarrou-o em cima, e olhou-se no espelho. Não. Era demais, pensou, e soltou o cabelo. Fica melhor.
Quando acabou deu um passo atrás e ficou a avaliar-se. Tinha bom aspecto: nem demasiado elegante, nem demasiado prática. Não queria exagerar. Apesar de tudo, não sabia o que a esperava. Passara muito tempo - provavelmente demasiado tempo - e muitas coisas diferentes podiam ter acontecido, até mesmo coisas que ela não queria ter em consideração,
Olhou para baixo, viu que as mãos lhe tremiam e riu-se para si. Era estranho. Normalmente não ficava assim nervosa. Como Lon, tinha tido sempre confiança em si, mesmo quando criança. Recordava-se que às vezes isso até havia sido um problema, especialmente quando saía com alguém, porque intimidava a maioria dos rapazes da sua idade.
Agarrou no livro de apontamentos e nas chaves do carro, depois pegou na do quarto. Deu-lhe a volta na mão um par de vezes, a pensar, "Chegaste até aqui, não desistas agora" e quase saiu nesse momento, mas em vez disso sentou-se na cama outra vez. Olhou para o relógio. Quase seis da tarde. Sabia que tinha que sair dentro de alguns minutos - não queria chegar depois de anoitecer, mas precisava de um pouco mais de tempo.

"Raios", murmurou "o que é que estou aqui a fazer? Não devia estar aqui. Não há motivo para isso", mas assim que o disse, sabia que não era verdade. Havia alguma coisa aqui. Se nada mais, pelo menos ela encontraria uma resposta.
Abriu o livro de apontamentos e folheou-o até que encontrou um bocado de jornal dobrado. Depois de o retirar lentamente, quase com reverência, cuidadosa para não o rasgar, desdobrou-o, e ficou a olhá-lo por um momento. "É este o motivo," disse por fim para si própria, "é disto que se trata."

Noah levantou-se às cinco da manhã e foi andar de caiaque durante uma hora pelo regato de Brices acima, como costumava fazer. Quando acabou, mudou-se para as roupas de trabalho, aqueceu alguns pãezinhos do dia anterior, agarrou num par de maças, e empurrou o pequeno-almoço para baixo com duas chávenas de café.
Foi outra vez trabalhar na vedação, reparando a maioria dos postes que precisavam. Era no Verão de S. Martinho, com a temperatura acima dos trinta e sete graus e pela hora do almoço estava com calor, cansado e sentiu-se feliz por fazer um intervalo.
Comeu junto ao regato porque os ruivos estavam a saltar. Gostava de os ver a saltar três ou quatro vezes e deslizar no ar antes de desaparecerem na água salobra. Por um motivo qualquer, agradara-lhe sempre o facto de o instinto deles não ter mudado em milhares, talvez milhões de anos.
às vezes interrogava-se se também os instintos do homem haveriam mudado durante todo esse tempo, e concluía sempre que não. Pelo menos nas questões básicas, mais primitivas. Até quanto se podia dizer, o homem sempre fora agressivo, lutara sempre para dominar, a tentar controlar o mundo e tudo o que nele havia. A Guerra na Europa e no Japão eram prova disso.
Parou de trabalhar um pouco depois das três e foi até um pequeno barracão que ficava junto à sua doca. Entrou, tirou uma cana de pesca, um par de iscas, e alguns grilos vivos que guardava à mão, depois saiu para o pontão, iscou o anzol, e lançou a linha.
Pescar fazia-o sempre reflectir na sua vida, e fê-lo também agora. Depois de a mãe morrer, lembrava-se de ter passado os dias numa dúzia de casas diferentes e, por um motivo qualquer, de gaguejar muito quando era miúdo e ser gozado por isso. Começou a calar-se cada vez mais, e chegado aos cinco anos já não falava de todo. Quando começou a ir à escola, os professores pensavam que era atrasado e aconselharam a que desistisse.
Em vez disso, o pai tomou o assunto nas suas próprias mãos. Manteve-o na escola, e depois fazia-o vir para o depósito de madeiras onde trabalhava, para arrastar e empilhar os toros. "É bom que passemos algum tempo juntos", dizia, enquanto trabalhavam lado a lado, "tal como o meu pai e eu fazíamos."

Durante este tempo que passavam juntos, o pai falava-lhe de pássaros e de animais, ou contava-lhe histórias e lendas vulgares na Carolina do Norte. Em poucos meses Noah estava a falar de novo, embora não muito bem, e o pai decidiu ensinar-lhe a ler em livros de poesia. "Aprende a ler isto em voz alta, e serás capaz de dizer tudo o que quiseres." Mais uma vez o pai tivera razão e, no ano seguinte, Noah havia perdido a gaguez. Mas continuava a ir para o depósito de madeiras todos os dias apenas porque o pai estava ali, e pelo fim das tardes lia as obras de Whitman e Tennyson em voz alta enquanto o pai se balançava a seu lado. Desde então nunca mais deixara de ler poesia.
Quando ficou um pouco mais velho, passava a maior parte dos fins-de-semana e férias sozinho. Explorava a floresta de Croatan na sua primeira canoa, seguindo pelo regato de Brices acima umas vinte milhas até não poder avançar mais, depois caminhava a pé os quilómetros que faltavam até à costa. Acampar e explorar haviam-se tornado a sua paixão, e passava horas na floresta, sentado debaixo dos carvalhos negros, a assobiar baixinho e a tocar a sua viola para os castores e gansos e as garças reais azuis selvagens. Os poetas sabiam que o isolamento na natureza, longe das pessoas e das coisas feitas pelos homens, era bom para a alma, e ele sempre se identificara com os poetas.
Embora fosse uma pessoa quieta, anos a levantar os pesos no depósito de madeiras ajudaram-no a tornar-se bom nos desportos, e os seus sucessos atléticos conduziram-no à popularidade. Gostava dos jogos de futebol, das corridas, e embora a maioria dos seus colegas de equipa também passassem os tempos livres juntos, raramente se juntava a eles. Uma pessoa por outra achava-o arrogante, a maioria achava simplesmente que crescera um pouco mais depressa que os outros todos. Tinha algumas amigas na escola, mas nenhuma o conseguira impressionar. Excepto uma. E essa foi depois do liceu.
Allie, a sua Allie.            
Lembrava-se de ter conversado com Fin acerca de Allie após terem abandonado o festival naquela primeira noite, e de Fin se rir. Depois fez duas predições: primeiro, que ele ia ficar apaixonado, e segundo, que não ia correr bem.
Noah sentiu um pequeno esticão na linha, e esperou que fosse uma perca de boca grande, mas os puxões acabaram por parar, e depois de rebobinar e verificar a isca, lançou outra vez.
Fin acabou por estar certo nas duas coisas. Na maior parte do Verão, ela vira-se forçada a dar uma desculpa aos pais de cada vez que se queria encontrar com ele. Não que não gostassem dele - só que vinha de uma classe social diferente, era demasiado pobre, e nunca aprovariam que a filha estabelecesse uma relação séria com alguém como ele. "Não me interessa o que os meus pais pensam, eu amo-te e sempre te amarei", costumava ela dizer. "Descobriremos uma maneira de ficarmos juntos."
Mas no fim não puderam. No princípio de Setembro o tabaco já havia sido ceifado e ela não tivera outra alternativa senão regressar com a família a Winston-Salem. "Só o Verão é que acabou, Allie, nós não" dissera-lhe na manhã em que ela partiu. "Nós nunca acabaremos." Mas acabaram. Por um motivo que ele nunca chegou bem a entender, as cartas que lhe escreveu não foram respondidas.
Por fim, decidiu partir de Nova Berna para ver se a conseguia arrancar do pensamento, mas também porque a depressão tornava quase impossível ganhar a vida ali. Primeiro foi para Norfolk e trabalhou num estaleiro durante uns seis meses antes de ser despedido, depois mudou-se para Nova Jersey porque tinha ouvido que ali a situação económica não estava tão má.

Acabou por encontrar trabalho num depósito de sucata, a separar fragmentos de metal do resto. O proprietário, um judeu chamado Morris Goldman, tinha por objectivo recolher a maior quantidade de sucata possível, convencido de que iria começar uma Guerra na Europa para a qual a América seria de novo arrastada. Noah, porém, não se preocupava com os motivos. Sentia-se apenas feliz por ter um trabalho.
Os anos que passara no depósito de madeiras haviam-no endurecido para este tipo de tarefa, e trabalhava duramente. Isso não apenas o ajudava a manter Allie fora do pensamento durante o dia, mas também porque era uma coisa que achava que tinha que fazer.
O pai sempre lhe dissera: "Dá um dia de trabalho por um dia de ordenado. Menos que isso é roubar." A atitude agradava ao patrão. "É uma pena que não sejas judeu," costumava dizer Goldman, "és um óptimo rapaz em todos os outros aspectos." Era o maior elogio que sabia fazer.
Ele continuava a pensar em Allie, especialmente de noite. Escrevia-lhe uma vez por mês, mas nunca recebia resposta. Por fim escreveu-lhe uma última carta, e obrigou-se a aceitar o facto de que o Verão que haviam passado juntos seria a única coisa que alguma vez poderiam partilhar.
Porém, apesar disso, ela continuava com ele. Três anos depois da última carta, foi até Winston-Salem na esperança de a encontrar. Foi até à casa dela, descobriu que se tinha mudado, e depois de ter falado com alguns dos vizinhos, acabou a telefonar para a firma R. J. R. A rapariga que atendeu o telefone era nova e não reconheceu o nome, mas foi procurar nos ficheiros de pessoal. Descobriu que o pai de Allie tinha abandonado a empresa e não tinha deixado endereço algum. Essa viagem foi a primeira e última vez que procurou por ela.
Durante os oito anos seguintes continuou a trabalhar para Goldman. A principio era um dos doze empregados, mas à medida que os anos passavam, a empresa cresceu e foi promovido. Por volta de 1940 já dominava o negócio e geria todos os movimentos, fazendo a corretagem das transacções e gerindo uma equipe de trinta pessoas. O depósito tinha-se tornado o maior negócio de sucata na costa leste.
Durante esse tempo, saiu com uma série de mulheres diferentes. Teve um caso mais sério com uma delas, uma empregada de mesa da cantina local de olhos azuis e cabelo negro sedoso. E embora saíssem juntos durante dois anos, e tivessem passado bons momentos juntos, nunca chegou a sentir em relação a ela o que sentira por Allie.
Mas também não se esqueceria dela. Era poucos anos mais velha do que ele, e foi ela quem lhe ensinou os modos de dar prazer a uma mulher, os locais a beijar e tocar, onde demorar-se, as coisas a murmurar. Por vezes passavam um dia inteiro na cama, abraçando-se e fazendo o tipo de amor que satisfazia a ambos.
Ela sabia que não ficariam juntos para sempre. Perto do fim da relação disse-lhe uma vez: "Gostaria de te poder dar aquilo que procuras, mas não sei o que é. Há uma parte de ti que manténs fechada para todos, até para mim. É como se não estivesses realmente comigo. Tens na cabeça alguém diferente de mim."

Tentou negar, mas ela não acreditou. "Sou uma mulher - sei destas coisas. às vezes, quando olhas para mim, sei que estás a ver outra. É como se estivesses à espera de que ela surgisse do nada para te levar para longe de tudo isto..." Um mês mais tarde foi visitá-lo ao emprego e disse-lhe que tinha encontrado outra pessoa. Ele compreendeu. Separaram-se como amigos, e no ano seguinte recebeu um postal dela a dizer que tinha casado. Desde então nunca mais ouvira falar dela.
Enquanto estava em Nova Jersey, visitava o pai uma vez por ano, perto do Natal. Passavam algum tempo a pescar, a conversar, e uma vez por outra faziam uma viagem até à costa para acampar nos bancos de areia mais remotos, perto de Ocracoke.
Em Dezembro de 1941, quando tinha vinte e seis anos, começou a Guerra, tal como Goldman havia predito. Noah entrou-lhe no escritório no mês seguinte e informou-o da sua intenção de se alistar. Depois regressou a Nova Berna para se despedir do pai. Cinco semanas mais tarde descobriu-se na caserna. Uma vez aí, recebeu uma carta de Golgman agradecendo-lhe pelo trabalho, junto com uma cópia de um certificado dando-lhe direito a uma percentagem do depósito de sucata se alguma vez fosse vendido. "Nunca o teria conseguido sem ti," dizia a carta. "És o melhor jovem que alguma vez trabalhou para mim, mesmo sem seres judeu."
Passou os três anos seguintes com o Terceiro Exército de Patton, marchando através dos desertos do Norte de África e das florestas da Europa com quinze quilos às costas, a sua unidade de infantaria nunca muito longe da acção. Observava os amigos a morrer à sua volta; via como alguns deles ficavam enterrados a milhares de quilómetros de casa. Uma vez, ao esconder-se numa toca de raposa junto ao Reno, imaginou que via Allie a tomar conta dele.
Recordava-se de a Guerra acabar na Europa e depois, alguns meses mais tarde, no Japão. Imediatamente antes de passar à disponibilidade, recebeu uma carta de um advogado em Nova Jersey, representando Morris Goldman. No encontro que teve com o advogado, descobriu que Goldman havia morrido um ano antes e que as suas propriedades tinham sido liquidadas. O negócio fora vendido, e a Noah era dado um cheque de quase setenta mil dólares. Estranhamente, por um motivo qualquer, não ficou nada entusiasmado com o assunto.
Na semana seguinte regressou a Nova Berna e comprou a casa. Recordava-se de mais tarde ter trazido o pai para a ver, de lhe mostrar o que ia reconstruir, apontando as mudanças que tencionava fazer. O pai parecia-lhe fraco enquanto via a casa, a tossir e espirrar. Noah ficou inquieto, mas o pai disse-lhe que não se preocupasse, assegurando-lhe que era apenas uma gripe.
Menos de um mês mais tarde o pai morreu de pneumonia e foi enterrado junto à mulher no cemitério local. Noah tentou passar por lá regularmente para deixar flores. Uma vez por outra deixava uma nota. E todas as noites sem falta guardava um momento para o recordar, depois dizia uma oração pelo homem que lhe tinha ensinado tudo o que era importante.

Depois de enrolar a linha, arrumou as ferramentas e regressou à casa. A sua vizinha, Martha Shaw, esperava-o ali para lhe agradecer, trazendo-lhe três pães caseiros e alguns biscoitos em paga do que ele fizera. O marido morrera-lhe na Guerra, deixando-a com três crianças e um estafado tugúrio como casa para os criar. O Inverno estava à porta e, na semana anterior, ele gastara uns dias na casa dela a reparar-lhe o telhado, a substituir as janelas quebradas e a vedar as outras, a arranjar-lhe o fogão a lenha. Com sorte, seria o suficiente para que sobrevivessem.
Assim que ela partiu, meteu-se no seu velho camião Dodge e resolveu visitar Gus. Parava sempre ali quando ia à loja porque a família de Gus não tinha carro. Uma das filhas saltou para a cabina e foi com ele. Fizeram as compras no supermercado de Capers. Quando regressou a casa não desempacotou logo as mercearias. Em vez disso, tomou um duche, pegou numa cerveja Budweiser e num livro de Dylan Thomas, e foi-se sentar no alpendre.

A ela ainda lhe custava a acreditar, mesmo com a prova nas mãos. Havia-o, descoberto no Jornal, em casa dos pais há três domingos atrás. Tinha ido à cozinha buscar uma chávena de café, e quando regressou à mesa, o pai sorrira e mostrara-lhe uma pequena foto. "Lembras-te disto?"
Passou-lhe o jornal, e depois de um primeiro olhar desinteressado, algo na foto lhe chamou a atenção, e focou mais de perto. "Não pode ser" murmurou, e quando o pai a observava com curiosidade, ignorou-o, sentou-se, e leu o artigo sem falar. Lembrava-se vagamente de a mãe se ter vindo sentar à mesa no lado oposto e de, quando por fim pôs o jornal de lado, a mãe a fixar com a mesma expressão que o pai mostrara momentos antes.
"Sentes-te bem?" perguntou a mãe por cima da chávena de café. "Pareces um pouco pálida." Não respondeu logo de seguida. Não podia. E foi então que percebeu que tinha as mãos a tremer. Fora nessa altura que isto começara.
"E aqui irá acabar, de uma maneira ou de outra" murmurou outra vez. Voltou a dobrar o recorte do jornal e guardou-o, recordando-se de que, mais tarde nesse dia, tinha deixado a casa dos pais com o jornal a fim de recortar o artigo e o voltar a ler. Leu-o outra vez antes de ir para a cama nessa noite, tentando aprofundar a coincidência, e leu-o outra vez na manhã seguinte como que para ter a certeza de que aquilo tudo não fora um sonho. E agora, depois de três semanas de longos passeios a sós, depois de três semanas de distracção, era este o motivo pelo qual tinha vindo.
Quando lhe faziam perguntas, dizia que o seu comportamento instável se devia à tensão. Era a desculpa perfeita - toda a gente compreendia, incluindo Lon, e fora por isso que ele não protestara quando ela quisera desaparecer por um par de dias. Os preparativos para o casamento eram desgastantes para todos neles envolvidos. Haviam sido convidadas quase quinhentas pessoas, incluindo o governador, um senador, e o embaixador do Peru. Era gente a mais, na opinião dela, mas o noivado deles era notícia e dominara as páginas sociais desde que tinham anunciado os seus planos seis meses antes. Ocasionalmente, a ela apetecia-lhe fugir com Lon e casar-se sem aquela confusão. Mas sabia que ele não iria concordar - como bom aspirante a político que era, adorava ser o centro das atenções.
Inspirou fundo e levantou-se outra vez. "É agora ou nunca," murmurou, depois pegou nas suas coisas e foi até à porta. Fez apenas uma ligeira pausa antes de a abrir e descer as escadas.

O gerente sorriu enquanto ela passava, e pôde sentir-lhe os olhos dele a seguirem-na enquanto saía e ia até ao carro. Deslizou para trás do volante, olhou para si própria uma última vez, depois pôs o motor a trabalhar e virou à direita em direcção a Front Street.
Não se surpreendeu de ainda se saber movimentar tão bem na cidade. Apesar de não vir aqui há anos, não era muito grande e orientou-se facilmente pelas ruas. Depois de atravessar o rio Trent passando uma antiquada ponte móvel, virou para uma estrada de cascalho e iniciou a última parte da sua jornada.
Aqui a planície era muito bela, como sempre fora. Ao contrário da área de Piedmont onde ela tinha crescido, a terra era plana, mas tinha o mesmo solo fértil e sedimentoso, ideal para o algodão e para o tabaco. Estas duas culturas, além da madeira, mantinham as cidades vivas nesta parte do Estado, e enquanto conduzia ao longo da estrada já fora da cidade, viu a beleza que em primeiro lugar tinha atraído as pessoas a esta região.
Para ela, nada tinha mudado. Raios de sol esporádicos passavam através dos salgueiros e nogueiras amargas de dez metros de altura, iluminando as cores do Outono. à esquerda, um rio cor de ferro desviava-se direito à estrada e depois afastava-se antes de dar a sua vida a um outro rio diferente, uns dois quilómetros mais adiante. A própria estrada de cascalho desenrolava o seu caminho entre quintas antebellum, e ela sabia que, para alguns dos agricultores, a vida não mudara desde antes do tempo em que os seus avós tinham nascido. A constância do lugar trouxe-lhe de volta uma inundação de recordaçÕes, e sentiu o coração a apertar-se-lhe à medida que, um a um, reconhecia os pontos de referência que há muito tempo esquecera.
O sol pendurava-se directo sobre as árvores à esquerda e, ao fazer uma curva, passou uma velha igreja abandonada há anos, mas ainda de pé. Tinha-a explorado naquele Verão, à procura de recordações do tempo da Guerra entre os Estados, e quando o carro a passou, as memórias desse dia tornaram-se mais fortes, como se tudo tivesse acontecido apenas na véspera.
Um carvalho majestoso nas margens do rio mostrou-se à vista a seguir, e as memórias tornaram-se mais intensas. Parecia exactamente igual ao que fora antes, os ramos baixos e grossos a estenderem-se horizontalmente ao longo do chão, com musgo e esparto drapejado sobre os membros como um véu. Lembrava-se de se ter sentado debaixo da árvore num quente dia de Julho com alguém que a olhava com uma nostalgia que fazia esquecer tudo o resto. E havia sido naquele momento que se tinha apaixonado pela primeira vez.
Ele era dois anos mais velho do que ela, e enquanto conduzia por esta estrada do tempo, também ele lentamente se foi focando de novo. Parecia sempre mais velho do que era de facto, lembrava-se de ter pensado isso. A aparência dele era a de alguém ligeiramente desgastado, quase como um agricultor a chegar a casa depois de horas a trabalhar no campo. Tinha as mãos calosas e os ombros largos que se desenvolvem naqueles que trabalham duramente para viver, e as primeiras rugas suaves começavam a formar-se-lhe junto aos olhos escuros que pareciam ler-lhe o mais pequeno pensamento.

Era alto e forte, com cabelo castanho claro, e belo à sua maneira, mas era da voz dele do que ela melhor se recordava. Tinha lido para ela naquele dia; lido para ela enquanto estavam deitados na relva debaixo da árvore, com uma entoação doce e fluente, quase musical. Era o tipo de voz que pertencia à rádio, e parecia ficar no ar quando lia para ela. Lembrava-se de fechar os olhos, ouvir atentamente, e deixar as palavras que ele ia lendo tocarem-lhe a alma:

Alicia-me para a névoa e para o crepúsculo.        
Parto como o ar, agito as madeixas brancas ao sol fugitivo...

Folheava velhos livros, as páginas com os cantos dobrados, livros que ele lera centenas de vezes. Ficava a ler durante um certo tempo, depois parava e os dois conversavam. Ela contava-lhe o que queria fazer na vida - as suas esperanças e sonhos para o futuro - e ele ouvia atentamente e depois prometia-lhe que faria tudo tornar-se realidade. A maneira como o dizia fazia-a acreditar nele, e então sabia quanto ele significava para si. Ocasionalmente, quando lhe pedia, ele falava de si, ou explicava-lhe porque é que tinha escolhido um poema em particular e o que pensava dele. Outras vezes limitava-se apenas a olhá-la daquele seu modo intenso.
Ficavam a ver o Sol a pôr-se e comiam juntos debaixo das estrelas. Já se estava a fazer tarde na altura, e ela sabia que os pais iriam ficar furiosos se soubessem onde estava. Nesse momento, porém, isso não lhe importava. Tudo o que podia fazer era pensar como aquele dia tinha sido especial, como ele era especial, e quando iniciaram o caminho de regresso a casa minutos mais tarde, e ele lhe pegou a mão na sua, ela sentiu o modo como a aquecia por todo o caminho de volta.
Uma outra curva da estrada e por fim viu-a à distância. A casa tinha mudado drasticamente em relação ao que ela se recordava. Abrandou o carro ao aproximar-se, virando para o longo caminho de terra delimitado pelas árvores que conduzia ao farol que a convocava desde Raleigh.
Guiou devagarinho, olhando para a casa, e inspirou fundo quando o viu no alpendre, a observar-lhe o carro. Estava vestido informalmente. à distância, parecia igual ao que fora antes. Durante um momento, quando a luz do Sol ficou por detrás dele, quase pareceu que tinha sido absorvido pelo cenário.
O carro dela avançou em frente, rolando devagar, depois por fim parou junto a um carvalho que dava sombra à frente da casa. Deu a volta à chave nunca desviando os olhos dele, e o motor espirrou até parar.
Ele desceu do alpendre e começou a aproximar-se, andando com facilidade, depois parou gelado quando a viu sair do carro. Durante um longo tempo tudo o que conseguiam fazer era olharem-se fixamente especados.
Allison Nelson, vinte e nove anos de idade e noiva, uma pessoa da alta sociedade, à procura de respostas que precisava de conhecer, e Noah Calhoun, o sonhador, trinta e um anos, visitado pelo fantasma que acabara por dominar a sua vida.

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